
Relato da artista visual
Nem tudo na vida acontece da forma como gostaríamos. Nem tudo é ordenado, organizado e corre conforme os planos. Deixamos o aconchego de nossa “cabana” no meio do mato e partimos em direção à cidade, não exatamente grande, mas urbana o suficiente para não ser considerada uma vila. Ainda não pensamos sobre a proposta de uma deriva em uma cidadela do interior, mas isso não importa agora. O dia estava nublado – imaginamos, pois, nossa lembrança já é turva apesar do curto tempo passado. A estrada era bela, boa parte de terra e o carro seguia lento. Muitas curvas e muitas ladeiras nos distanciavam do destino final. Teria começado aí nossa deriva? O começo é sempre incerto e o final mais ainda. Em todo caso, a chuva decidiu cair no exato momento em que começamos a colher nossos registros, em sua maioria fotográficos. O caos parecia reinar, em nossos passos, nos pingos que caiam, nos transeuntes em quem esbarrávamos e talvez em nossos pensamentos desconexos – e talvez também conectados. Cada um a seu tempo, mas decisões conjuntas eram feitas sem se pronunciar uma palavra. Por aqui ou por ali era pouco discutido. “Às três da tarde e sob um dilúvio torrencial, os membros do movimento Dadá” ecoava em minha cabeça como os sinos da Catedral São Pedro de Alcântara, que havíamos escutado e tirado fotos mais cedo, em um momento mais feliz e mais seco. Não era um dilúvio, mas a chuva me irritava. Podia ver muitos elementos interessantes, mas o caminhar incessante da multidão atrapalhava. “Lentamente se acalmam – imagino eu”, minha irritação e minha percepção. Começou a ser possível me conectar com os pássaros, as folhagens e os estranhos emaranhados que íamos descobrindo. Pássaros de pedra que não levantam voo nem estremecem, tinham permanecido semi-invisíveis para mim até então, entre tantas derivas já realizadas. Só os via nas caixas de correio, em representações quase bidimensionais. Mas agora tridimensionais, eram guardiões de lares e nos mostravam em que direção seguir – ou não seguir. “O céu é o limite”, diz o dito popular, então busquemos o céu, o voo e a liberdade. “Solta o amor” ela disse uma vez, mas o passarinho espatifou-se no chão. “A rolinha voou como uma pedra” quando tentamos soltá-la da gaiola, minha mãe e eu. Mas sobreviveu, “para nossa alegria”. Fizemos então, um “abrigo para pássaros feridos”, para que eles pudessem se recuperar. E recuperaram. Pelo menos para o Artur, que sobreviveu a uma grave doença e precisou ficar internado. E aqui estão eles de novo, os passarinhos, povoando nossa imaginação criadora, que intuitivamente os encontrou em outro formato. Uma sincronicidade talvez? Ou uma serendipidade? Vivem no meio de folhagens urbanas, artificiais e onde mais puderem existir. Vemos esperança onde estiver ao nosso alcance: nos pássaros, na vegetação pífia que cresce entre as frestas e até mesmo na incoerência do urbano. Esperança é o que nos resta. A esperança está contida no ato de imaginar, até mesmo em imaginar a esperança. A imaginação-intuição criadora é a grande esperança do porvir e quando ela se esgotar, apagaremos as velas, fecharemos os olhos e o show terá acabado.
Sobre o grupo "Céus Cantados": O primeiro grupo, talvez neste momento mais significativo para mim, celebra a temática dos pássaros, do céu e da liberdade. Ele evoca a imagem de aves, posicionadas privilegiadamente no topo de construções, como se fossem simultaneamente seus guardiões e seus moradores, talvez a ponto de levantar voo. A figura do pássaro, como poderá ser visto no decorrer das análises e reflexões da minha tese, está associada à noção de liberdade, tanto criativa, artística, intelectual, como individual, enquanto sujeito. Propositalmente tratadas para possuir ruídos, elas aludem simultaneamente a uma sensação de nostalgia, como se fossem imagens de um passado distante, talvez um passado primordial, fora da linha temporal histórica.
Sobre a foto elegida: A primeira fotografia O canto dos bons ventos, elegida para representar o grupo, traz também a ideia do canto, pois apresenta a figura de um galo, que como bem sabemos, é associada ao despertar do dia, com seu canto de prenuncio de uma nova manhã. Além disso, o galo faz parte de um catavento de ferro ou, moinho de vento, giruá, que indica a posição do vento. Assim, buscamos simbolizar o prenuncio de bons ventos, boas notícias, bons presságios e sucesso, em uma alusão contínua à esperança.
Sobre o grupo "Estranhezas descontextualizadas": Este grupo chama a atenção pela desconexão das imagens, onde sua semelhança está em sua dessemelhança e o que as une é sua estranheza no cenário caótico do espaço que percorremos. Cada foto é singular e poderia ter sua própria narrativa. Se o grupo anterior se caracterizava pela presença, este caracteriza-se pela ausência: ausência de funcionamento, lógica e ordenação. Ao mesmo tempo, ele transmite uma ideia de solidão e abandono, típico das coisas estragadas, esquecidas ou ignoradas.
Sobre a foto elegida: Círculos aquáticos em uma possível enxurrada ou, As voltas da vida, faz menção a própria qualidade visual da fotografia, que apresenta vários círculos em uma poça d’água, reverberando, expandindo-se e entrecruzando-se, devido às gotas da chuva que nela caem. Ela remete à ideia da circularidade da vida, que parece repetir-se continuamente dentro da história de um indivíduo e da própria sociedade como um todo. Esta circularidade prevê enxurradas – os períodos turbulentos que atravessamos em existência como sujeitos e como comunidade. Talvez, intuitivamente, essa fotografia apresente-se como uma oposição ao Canto dos bons ventos, pois se uma prenuncia positividade, a seguinte sugere maus agouros. Ainda assim, dentro da circularidade, se há a enxurrada, há também a calmaria, uma pressupõe a outra. Portanto, mesmo em sua negatividade, podemos entrever esperança.
Sobre o grupo "Folhagens urbanas": A temática dos jardins vem me acompanhando desde minha graduação: timidamente abordada na habilitação em pintura, se desenrolando como uma trepadeira na habilitação em gravura e expandindo-se como uma flor em meu mestrado. Os excêntricos jardins urbanos são sobrevivências da natureza e da humanidade diante do mundo de concreto das cidades contemporâneas. Cada manifestação vegetal, por menor e mais patética que seja, é um pequeno jardim, um cosmos onde vivem “seres invisíveis”. O grupo captura estes pseudo-jardins em sua dicotomia com o urbano, de forma a chamar a atenção para a delicadeza de sua existência dentro da cidade.
Sobre a foto elegida: A imagem escolhida carrega algumas características que me agradam muito. Em primeiro lugar é literalmente a primeira palavra de seu título: o ornamento. Formas ornamentadas me fascinam, como pode ser visto devido a sua presença em boa parte da minha produção. Em segundo lugar, o tipo de ornamento em destaque é característico das construções arquitetônicas antigas do Brasil, sendo especialmente comuns na minha cidade natal, Belo Horizonte (MG), presentes nos edifícios do período eclético. Este elemento carrega uma contradição imbricada em seu título: faz referência a uma forma orgânica – a pinha – mas é um objeto de concreto, aludindo ao urbano. Simultaneamente, ao fundo, podemos ver uma folhagem caindo sobre a parede e parte da janela da edificação, referenciando também a uma ornamentação, mas neste caso, verdadeiramente vegetal. Assim, esta imagem dotada de contradições e por causa delas, une os mundos da natureza e do urbano, o que de forma ampliada nos traz de volta a discussão sobre a conduta do homem nos tempos das grandes cidades e a perda da humanidade (vista como natureza, porque o homem é parte da natureza) diante da tecnologia (representada pelo urbano moderno e estéril e pela técnica).
Petrópolis, RJ, Brasil, Dezembro de 2023.